Chamou-me tudo o que quis… e eu não fiz nada

Chamou-me tudo o que quis… e eu não fiz nada

– Can I get you a drink?

Eram dez e meia da noite, tínhamos acabado de ensinar adultos com dificuldades, eu estava exausto e queria ir para casa. Mas ele insistia:

– Come on, just one beer! I’ll get it!
Não tinha ninguém à espera, sentia-se sozinho, via-se que estava desesperado por conversar com alguém. A correria do trabalho não dava para grandes convívios na escola. Para mim ele era um professor entre vários, que eu encontrava e a quem dispensava “hellos” de circunstância sempre que nos cruzávamos. Para ele, eu seria o “boss” pouco acessível. Resolvi aceitar:
– OK, why not? Let’s have a drink!
Fomos pedindo e bebendo, eu mandei vir petiscos para ensopar, ele já me levava umas três cervejas de avanço quando notei que arrastava a voz, transfigurando o rosto e o discurso. Sem motivo aparente, começou a falar contra os portugueses, contra o IF, contra todos os professores que conhecia, contra a falta de educação dos alunos e dos pais, e sobretudo contra mim, que era o responsável por tudo aquilo. De olhos raiados de vermelho (era fácil ver ódio naqueles olhos!) e cara bem junto à minha disparava:
– Tu não tens consideração por nós, que estamos fora do nosso país! Exiges muito e o ordenado nem metade chega a ser do que podíamos ganhar na Inglaterra! O que é que vocês, portugueses, julgam que são? Comparados com os ingleses, “you´re shit, can you hear me? Shit!”.
Estive para lhe perguntar porque não voltava para lá, porque tinha concorrido para um país que era assim tão mau, mas calei-me, no estado em que ele estava não dava para conversar. Não nego que aquelas palavras me apanharam de surpresa e me feriram.
Paguei. No caminho para o carro, meio trôpego, agarrou-me por um braço enquanto me gritava ao ouvido:
– Fuck you, all Portuguese bastards!
Fizemos o caminho de regresso quase em silêncio. Olhei-o de soslaio e pareceu-me que tinha adormecido. Deixei-o junto ao quarto.
No dia seguinte ele apareceu no IF, fresco e pronto para dar as aulas. Cumprimentou-me com um “hello” simpático. Onde estava a pessoa que me tinha desancado a noite anterior?
Aquele episódio fez-me pensar.
Não seria por acaso que, na maioria dos casos, os professores que vinham de fora eram impecáveis até o final do ano lectivo. Mas quando se iam embora em Julho mal se despediam e nunca mais se ouvia falar deles. Parecia que abandonavam o IF e o país com um sentimento de revolta que haviam abafado durante os nove meses em que aqui estiveram. Talvez se sentissem incompreendidos, vítimas de ingratidão. No fundo, achavam que devíamos estar-lhes muito agradecidos por termos tido “ingleses verdadeiros” a trabalhar numa escola e num país que os não merecia.
(Lembro-me de excepções, felizmente).

 

 

 

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