História de uma professora com final muito triste
(Não aconselhamos a leitura a pessoas sensíveis)
Gostava que a história desta professora fosse lida de forma diferente das histórias que contei até agora. Porque se trata de um caso muito especial. Verdadeiramente não se trata de um cromo, trata-se da Rachel. Que recordo com mágoa, com respeito, com carinho.
Porque é que foi ela a escolhida de entre uma pilha de mais de cem candidatos? Distinguia-se porque me parecia ser uma jovem determinada e que queria muito vir para Portugal. Tinha habilitações (licenciatura, TEFL, um curso extra em língua portuguesa) e um ano de experiência de ensino no México, numa escola que lhe tinha escrito uma carta de referência bastante boa.
Quando chegou encontrámo-nos num café e lembro-me que a achei um pouco estranha. Pediu uma bica e notei-lhe dificuldade em rasgar o pacote do açúcar e, depois de colocar a colher na chávena à segunda tentativa, mexia o café de forma muito desajeitada. Parecia faltar-lhe coordenação em certos movimentos, uma linha coerente que lhe conduzisse as falas e os gestos. O olhar perdia-se à volta, as ideias saltitavam-lhe sem nexo. Apesar de preocupado, achei que tudo aquilo era por causa do nervosismo inicial.
Mas com o início das aulas os meus receios foram-se tornando reais. A Rachel tinha qualquer coisa! O ensino dela era um desastre! Os alunos pouco caso faziam da professora, que não se conseguia impor. As aulas eram uma confusão, com a Rachel a fazer um esforço hercúleo para se fazer entender, escrevendo tudo no quadro a um ritmo alucinante. A maioria do tempo era passado com ela virada para o quadro e os alunos nas suas costas alheados, a conversar. Alguns saiam da sala e voltavam a entrar sem ela notar. Tive algumas conversas com ela, frente a frente, a evitar-me o olhar e a estancar com dificuldade as lágrimas nervosas. Falei-lhe das aulas, das queixas dos alunos e dos pais, da necessidade de haver alterações. Eu não sabia o que responder quando ela me pedia com ar desesperado: “Diz-me como devo fazer, que eu faço! Eu quero ser boa professora! Eu vou ser boa professora!”. Trabalhava sábados e domingos a preparar as aulas ao pormenor. Escrevia tudo em dezenas de folhas que arquivava e transportava para as aulas, mas depois confundia-as e no decorrer das aulas não encontrava os apontamentos que queria. E no fim nada resultava. Ao tentar explicar um assunto desligava-se de tudo o resto, incluindo a presença dos alunos. Os alunos, ao início tolerantes, passaram a ser implacáveis, explorando o ridículo da situação.
A Rachel dava pena, mas as crianças não se compadecem e sabem ser cruéis quando querem. Um dia entrou na sala de aula com um sapato de cada feitio e foi uma risada do princípio ao fim. Muitas vezes trocava a matéria e as turmas: chegou a explicar o “present perfect” aos alunos do 1º ano e passou meia hora a ensinar uma lista de animais a alunos que se preparavam para Cambridge.
Aguentei enquanto pude, mas a situação tornou-se insuportável. Por isso tive de colocar o coração ao largo e tomar uma decisão: disse-lhe que estava a ter muitas queixas e que até ao Natal ela teria de arranjar outra escola, por isso o melhor era começar a concorrer. Felizmente que lhe ofereceram emprego a partir de Janeiro numa escola perto de Torres Novas, por isso quando partiu não fiquei com a consciência pesada. E ela até parecia satisfeita com a mudança.
Mais tarde encontrei uma pessoa que me informou da situação da Rachel e fiquei chocado com o que ouvi. No final do ano lectivo a escola não lhe renovou o contrato, por isso tinha de abandonar Portugal (a CEE ainda não existia). Ficou muito deprimida por lhe terem recusado trabalho (que ela pensava merecer) e fechou-se em casa a chorar. Deve ter sentido um enorme desânimo após tanto esforço, e a falta de reconhecimento abalou-a muito. No final de Junho teve de enfrentar o que nunca imaginara: regressar a Inglaterra e à casa dos pais, vergada ao peso amargo da derrota. Infelizmente o seu coração não aguentou essa provação. Não sei (acho que ninguém chegou a saber) se ela teria problemas cardíacos, ou quais seriam os reais problemas físicos ou mentais de que padecia. O que me contaram foi terrível: pouco tempo depois de ter saído do avião em Londres a infeliz Rachel caiu no chão, sem vida. Morreu exausta por ter chegado ao limite das suas forças, em busca da afirmação através de esforços impressionantes sem ter conseguido resultados.
Ainda hoje, passados quase trinta anos, penso muito na Rachel. Desejo muito que esteja em paz, num local onde as pessoas possam ser diferentes, onde não seja preciso uma superação quase sobre humana para se fazer parte de uma sociedade formatada, exigente e impiedosa.
(Lamento ter de referir o final tão triste da Rachel. Mas infelizmente a vida nem sempre vai no rumo que desejamos).